22 de setembro de 2008

Além da condescendência

Estado – Aliás – 21-Set-2008 – Página J7

Passado o esforço pelo politicamente correto, chega a era de uma
solidariedade natural com os atletas paraolímpicos.

Uma pessoa de classe media, de nível de instrução razoável em qualquer
pais do mundo, que goste ou não de esportes, saberá instintivamente
como se relacionar com o esporte paraolímpico e como falar dele. Ou,
para ser mais exato: saberá instintivamente que palavras e que
atitudes evitar para não ter problemas, se o assunto vier a tona.
Ela dirá que apóia de todo o coração (e não "apaixonadamente") o
esporte praticado por portadores de deficiência e os eventos em torno
dele (bem como o dinheiro gasto com isso); dirá que admira muito o que
esses atletas fazem; pode ser ate que fale deles de um modo
radicalmente "igualitário", dizendo se tratar de pessoas com
"habilidades diferentes", e não de "deficientes".
Ninguém ira contrariá-la. Por outro lado, ninguém jamais acreditara
que ela esta dizendo realmente o que pensa (muito menos prestara
atenção ao que diz). É possível, nesse caso, que não falte certo
sarcasmo na forma como o portador de deficiência encara essa pessoa.
O comportamento politicamente correto é a maneira adequada de "se
safar" quando alguém, "do nada", faz um comentário sobre a
Paraolimpíada numa conversa e você não sabe o que dizer . No entanto,
o politicamente correto se esgota aí.
Talvez você queira tentar o próximo nível de sofisticação dizendo que,
não, você não acompanha os jogos porque acha que, em uma cultura como
a nossa, que nutre tão visivelmente uma obsessão pela perfeição
física, a exibição e a admiração de corpos cuja identidade (e, em
alguns casos, cuja singularidade) repousa na falta e na distancia
intransponível da perfeição,acaba sendo obscena, chocante e verdadeiro
ato de discriminação para com os que se encontram em situação bastante
desvantajosa por sua condição física.
Você talvez tenha visto alguns momentos da Paraolimpíada na TV,
portanto sabe como as vezes a coisa é grotesca e como pode ser difícil
sufocar a tentação de rir que o faz sentir vergonha de si mesmo.
Sem dúvida, esse segundo nível de correção apresenta uma atitude menos
repulsiva e hipócrita do que o primeiro, com seu discurso igualitário
asséptico e quase compulsório que todos conhecem, mas em que não
acreditam.
Tenho, porem, a impressão (ainda muito vaga) de que alguma coisa sem
precedentes aconteceu na cobertura que os meios de comunicação fizeram
neste ano dos esportes disputados por portadores de deficiência, algo
que talvez supere o "segundo nível de atitude" que, por enquanto, tem
sido a reação menos desprezível possível.
No computo diário, foi maior o volume de informações dado pela mídia
sobre cada atleta e seus diferentes handicaps, bem como sobre os
eventos dos quais participaram. Um número surpreendente de fãs do
esporte sentiu-se orgulhoso, pela primeira vez, de "seus" atletas
paraolímpicos (isto e, "dos atletas do seu pais").
Oscar Pistorius, o velocista sul-africano que desde a infância se
desloca com duas próteses acopladas ao corpo, tornou-se ícone mundial,
alguém cujas realizações suscitaram admiração praticamente unânime, e
cujos direitos e possibilidades provocaram debates acalorados. Alguma
coisa mudou realmente, e de um modo muito profundo.
0 tom é diferente, sem dúvida, e muitos de nos - de repente - passamos
a nos sentir solidários com os atletas portadores de deficiência, mas
uma solidariedade que não temos de por para funcionar, como um motor
velho e teimoso, a base de argumentos tediosos e de condescendência
moral.
Oscar Pistorius, o protagonista global, é um sujeito "cool", tão
"cool" que quase foi parar em um pôster quando minha universidade
organizou recentemente um colóquio internacional cujo tema era "0
futuro dos esportes" - embora, no fim (espero que pela Ultima vez) a
política do politicamente correto tenha prevalecido, já que os
organizadores escolheram a imagem de uma bela jovem para figurar no
pôster.
Contudo, embora ninguém duvide de que alguma coisa mudou, e o que
mudou pode ser sintetizado em uma nova atitude em relação aos corpos
dos atletas paraolímpicos, não se sabe de modo algum por que essa
mudança ocorreu.
Em alguns casos, os para-atletas parecem ter conquistado a admiração
de um número considerável de espectadores. Bom exemplo disso é o
basquete em cadeira de rodas. Basta ver o jogo para se dar conta de
que ha ali uma arte que vai alem do concebível, como no basquete da
NBA. Você sente que a disputa é acirrada e até fisicamente feroz, como
no hóquei sobre o gelo no Canadá ou na Rússia. Percebe-se também o
tempo todo uma qualidade que o futebol só exibe de vez em quando: uma
enorme velocidade.
As vezes, penso que seria interessante, e também um bom desafio para
qualquer atleta, jogar basquete em cadeira de rodas. Será que esse
tipo de identificação seria uma "atitude correta"? Gostaria de por de
lado aqui toda e qualquer forma de superioridade moral, mas talvez
haja uma coisa que pudesse ser aceitável no futuro: fazer com que
atletas não deficientes participem de pelo menos alguns dos eventos
que ainda associamos exclusivamente aos atletas portadores de
deficiência.
0 basquete de cadeira de rodas seria um bom candidato. Afinal, sempre
houve esportes cujos movimentos e exigências, como os requeridos pelo
basquete de cadeira de rodas, nunca foram totalmente "naturais". E 0
caso da marcha atlética, por exemplo, ou de todos aqueles movimentos
"naturais" vedados aos atletas nas lutas ou no vôlei. Por que não
admitir que você tem vontade de arremessar uma bola na direção da
cesta sem tocar o pe no chão - embora ele estivesse em perfeitas
condições para isso.
A possibilidade de imaginar um futuro desses talvez seja uma razão
para mudarmos de atitude em relação ao esporte para portadores de
deficiência - e vejo como essa possibilidade tem crescido
espontaneamente nos meus quatro filhos (com idades entre 17 e 30
anos), como em muitos dos meus alunos. Alem disso, 0 fascínio pelos
corpos híbridos começa a tomar conta de nós. 0 estilo de corrida de
Oscar Pistorius, em razão de suas próteses - e não apesar delas -, tem
uma elegância peculiar e encantadora. Uma elegância que talvez não
esteja muito distante do piloto de Formula 1, cujo corpo se une ao
corpo do carro - ou da forma dos pilotos das primeiras décadas da
aviação, que pareciam ter sido gerados juntamente com suas maquinas,
espécie de centauro da mitologia greco-romana.
Se não for esse o futuro para o qual estamos rumando, e pelo menos uma
idéia utópica que podemos e devemos cultivar.
Afinal de contas, quantos de nos hoje, indivíduos da classe media
globalizada, vivemos sem pelo menos uma parte artificial em nossos
corpos? As próteses de Pistorius são apenas mais visíveis - e muito
mais bonitas - do que a coroa que trazemos no dente .•

Hans Ulrich Gumbrecht e professor de literatura na Universidade de
Stanford e autor de Elogio da Beleza Atlética (Cia. das Letras)


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