A discussão será organizada segundo três eixos: (1) o papel do açúcar, (2) os adoçantes como alternativa e (3) as lacunas e implicações farmacológicas.
1. O açúcar e seus efeitos – perfil farmacológico e de saúde.
O açúcar adicionado (sacarose, glicose, frutose, xarope de milho de alta frutose) tem longa história de associação com riscos metabólicos: obesidade, resistência à insulina, dislipidemia, hígado gorduroso não alcoólico, e doenças cardiovasculares. A literatura em epidemiologia nutricional evidencia que dietas ricas em açúcares livres elevam a carga glicêmica, favorecem o acúmulo de gordura visceral, ativam vias inflamatórias e oxidativas. Por exemplo, em relatório da American Heart Association (2018) destaca-se que a substituição de bebidas açucaradas por outras alternativas pode beneficiar adultos, embora os dados em longo prazo sejam limitados.
Do ponto de vista farmacológico, a ingestão de açúcar elevado promove secreção de insulina, ativa a via do mTOR, estimula lipogênese, e em longo prazo há ativação do sistema de sinalização de glicose (via PKC, AGE, RAGE) que contribui para dano vascular e metabólico.
Dado esse panorama, a lógica de substituir ou reduzir o açúcar na dieta é plausível como estratégia de redução de risco. Porém, o simples “substituir por adoçantes” não está isento de complexidades.
2. Adoçantes como alternativa: promessas e problemas
2.1. Promessas
Os adoçantes (edulcorantes) — tais como sucralose, aspartame, sacarina, acessulfame-K, estévia, além de álcoois de açúcar (xilitol, eritritol) — são comumente utilizados para reduzir a carga calórica da dieta mantendo o sabor doce. Em contextos de sobrepeso/obesidade ou diabetes tipo 2, isso parece uma estratégia atraente: reduzir o consumo de calorias e glicose pós-prandial.
Em 2018, a AHA reconheceu que para adultos que consomem muitas bebidas açucaradas, as versões com adoçantes podem reduzir a ingestão calórica e representar “estratégia conveniente”.
2.2. Evidências recentes de alerta
Entretanto, recentes artigos (incluindo os publicados no Medscape) apontam para riscos ou efeitos adversos dos adoçantes:
- Alterações no microbioma intestinal: estudo citado por Medscape (2022) mostrou que adoçantes “sem nutrientes” modificaram o microbioma humano e influenciaram tolerância à glicose.
- Possível risco cardiovascular: estudo sobre o eritritol apontou que ingestão em voluntários saudáveis (30 g) resultou em aumento de agregação plaquetária e marcadores de ativação plaquetária, sugerindo efeito pró-trombótico.
- Declínio cognitivo: estudo longitudinal com adultos e idosos indicou que maior consumo de adoçantes de baixa ou nenhuma caloria associou-se a 62% mais rápido declínio global cognitivo, comparado ao menor consumo.
- Diretriz da World Health Organization (OMS) de 2023: uso de adoçantes para perda de peso é desencorajado, com associação a maior risco de diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e morte em adultos.
- Em estudo sobre apetite, consumo de sucralose em mulheres e pessoas com obesidade aumentou a ativação cerebral de recompensa e o consumo alimentar subsequente num buffet.
2.3. Considerações farmacológicas
Do ponto de vista farmacológico/ fisiológico, os adoçantes não são “neutros”. Apesar de não fornecerem ou fornecerem muito poucas calorias, podem:
- ativar receptores de sabor doce (T1R2/T1R3) na boca e no intestino, com consequente liberação de hormônios incretínicos, alteração do trânsito intestinal ou secreção de peptídeos gastrointestinais;
- alterar o microbioma intestinal, influenciando a absorção de glicose, secreção de GLP-1/GLP-2, e a permeabilidade intestinal;
- produzir metabólitos ou efeitos indiretos que afetam a agregação plaquetária (como no caso do eritritol) ou alterações vasculares;
- modular circuitos de recompensa cerebral de modo a alterar o comportamento alimentar (como evidenciado nas mulheres estudadas com sucralose).
Logo, a substituição do açúcar por adoçante não configura simplesmente “zerar calorias” e eliminar risco, mas introduz outras vias de modulação biológica que merecem escrutínio.
3. Crítica à evidência e implicações para a farmacologia e saúde pública
3.1. Força e tipo de evidência
- Grande parte das evidências são observacionais, o que limita inferência de causalidade (por exemplo, o achado de maior risco cardiovascular ou cognitivo com adoçantes pode sofrer de viés de consumo, confusão residual, efeito reverso – pessoas já em risco podem consumir mais adoçantes). (ver referência da AHA: “interpretação cautelosa”.)
- Estudos de intervenção controlada em humanos são limitados, de curto prazo ou com doses talvez não equiparáveis aos consumos habituais (por exemplo, 30 g de eritritol).
- Ainda falta padronização: diferentes adoçantes, diferentes populações, diferentes contextos (saudáveis, obesos, diabéticos, idosos) e diferentes desfechos (metabólico, cardiovascular, cognitivo).
- Os mecanismos fisiológicos ainda são pouco elucidados (por exemplo, receptor de eritritol nas plaquetas permanece hipotético) e os efeitos de longo prazo permanecem incertos.
- Revisões sistemáticas recentes (como a da OMS) sugerem que evidência não suporta o uso generalizado de adoçantes para controle de peso ou prevenção de doenças crônicas.
3.2. Implicações farmacológicas e para políticas
- Como pesquisador de farmacologia, há necessidade de investigação mais detalhada dos mecanismos de ação dos adoçantes: por exemplo, interação com receptores gustativos extrabucais, impacto no eixo microbioma-intestino-cérebro, efeitos sobre agregação plaquetária/vasculatura.
- Do ponto de vista de prescrição ou recomendação, não é suficiente tratar adoçantes como “inertes” — eles devem ser vistos como substâncias bioativas, com risco-benefício a avaliar.
- Em políticas públicas, a mensagem deve ser mais cautelosa: nem açúcar livre elevado, nem substituição indiscriminada por adoçantes são “soluções mágicas”. O foco pode estar na redução geral de doces/ sabores muito adocicados, no aumento de água e bebidas sem sabor doce, no estímulo ao paladar menos doce.
- Em educação em saúde, útil considerar que adoçantes podem manter ou reforçar preferência por sabores doces, o que pode perpetuar o desejo por alimentos ultraprocessados, em vez de favorecer dieta mais natural.
3.3. Recomendações para pesquisa futura
- Ensaios clínicos randomizados de longa duração que comparem consumo de açúcar vs adoçantes vs água/neutra, com desfechos metabólicos, cardiovasculares, cognitivos, e com amostras representativas de diversas faixas etárias, sexos, e condições (ex: diabetes, obesidade).
- Estudos farmacológicos para identificação de receptores ou mecanismos de ação dos adoçantes (por exemplo, no sistema de agregação plaquetária, ou no sistema de recompensa cerebral).
- Estudos de farmacocinética/farmacodinâmica dos adoçantes: absorção intestinal, metabolização, efeitos sobre microbioma, efeitos pós-prandiais.
- Pesquisa sobre dose-resposta, efeitos cumulativos, interações com outros alimentos, impacto de adoçantes “naturais” (ex: estévia) versus “artificiais”.
- Avaliação de políticas públicas: qual impacto real na população da substituição de açúcar por adoçantes, e se isso efetivamente traduz‐se em redução de doença crônica ou apenas em modificação de hábito.
4. Conclusão
Assim, à luz dos achados recentes, a noção de que adoçantes são uma alternativa totalmente segura ao açúcar deve ser revista com cautela. Enquanto o açúcar elevado continua claro fator de risco metabólico e cardiovascular, os adoçantes – ao menos alguns deles – parecem ter efeitos biológicos que não são desprezíveis. Considerações importantes:
- Para indivíduos com diabetes tipo 2 ou que consomem grandes quantidades de açúcares, os adoçantes podem ainda ter um papel de substituição, mas não devem ser vistos como “sem efeito”.
- Para a população em geral, especialmente crianças ou aqueles com metabolismo saudável, a redução de ambos — açúcar e adoçantes — pode ser uma estratégia mais robusta.
- Do ponto de vista farmacológico, é crucial tratar adoçantes como compostos bioativos, investigar seus efeitos sistêmicos e considerar os riscos potenciais.
- Em formulação de políticas públicas, promover a preferência por bebidas sem sabor doce, e reduzir o “gosto do doce” como norma cultural pode trazer benefício a longo prazo.