14 de janeiro de 2006

O ultramaratonista

As longas distâncias seduzem milhares de corredores a treinar com o
objetivo de completar uma maratona. Alguns levam esse desafio a um
nível superior ? as ultramaratonas.

O treino e a corrida de distâncias maiores do que a maratona causam um
estresse único, que coloca o corredor sob o risco de vários problemas
clínicos e ortopédicos.

Ultramaratona é a corrida com distância superior a 42 quilômetros.
Pode variar de acordo com uma determinada quilometragem ou um limite
de tempo. As quilometragens mais usuais são 50 quilômetros, 50 milhas,
100 quilômetros e 100 milhas, cada uma com tempos-limite específicos.
O corredor é desclassificado se não chegar aos check points no
tempo-limite. Os eventos por tempo mais comuns são de seis, 12, 24 e
48 horas e eventos multiday. O corredor deve cobrir a maior distância
possível no tempo determinado. Os multiday apresentam intervalos para
o sono.

As corridas podem ser feitas em trilhas, e nesse caso obstáculos como
pedras, córregos e raízes, além da variedade do terreno, potencializam
o desafio. A mudança de temperatura em eventos com mais de 24 horas é
uma dificuldade especial. A distância entre os check points pode
variar até 10 quilômetros. Normalmente, há grande variedade de
alimento e repositores hídricos. A maioria dos participantes corre com
o próprio suprimento (como camel back). Em eventos mais longos, os
corredores contam com uma equipe de apoio, que providencia agasalhos,
tênis, alimento, auxílio médico etc.

Complicações clínicas do ultramaratonista

Problemas cardíacos

Vários estudos mostram um elevado nível de creatino quinase (CK) no
sangue, que é uma proteína liberada quando ocorre lesão muscular (do
aparelho locomotor ou do músculo cardíaco) em ultramaratonistas.

A CK-MB é uma proteína específica para quando ocorre lesão do músculo
cardíaco. Em 1994, todos os participantes do Hard-rock 100, uma
corrida considerada difícil, por seu tempo-limite de 48 horas e pela
alta altitude do local, foram examinados. Todos mostraram níveis
elevados de CK-MB e todos apresentaram um aumento da função do
ventrículo esquerdo; porém, de 18 a 24 horas após a corrida, os exames
foram repetidos e encontravam-se normais.

Complicações renais

A proteína citada anteriormente deve ser eliminada pelo rim. Um
aumento excessivo da função renal pode levar a uma insuficiência renal
aguda, que necessita de internação e, em alguns casos, de hemodiálise.

Desidratação

Muitas corridas de 100 milhas apresentam uma pesagem obrigatória do
corredor, antes da corrida e nos check points. Essa medida visa a
evitar que um corredor desidratado sofra alguma complicação longe de
socorro médico. Em alguns eventos, uma perda de peso maior do que 7%
leva à desclassificação do corredor.

O principal problema da desidratação é um colapso (desmaio) do
corredor durante a prova, pois a desidratação diminui o volume
sanguíneo do paciente, que, durante a corrida, se torna insuficiente
para um adequado aporte de oxigênio aos tecidos.

Hiponatremia

Hiponatremia é a diminuição da concentração de sódio no sangue.
Normalmente, os atletas com hiponatremia não apresentam queixas. Os
sintomas mais leves são inespecíficos, como, por exemplo, cansaço,
náuseas e confusão mental.

Os sintomas mais graves, porém, podem ser fatais. A hiponatremia
ocorre em atletas que não perdem ou até aumentam de peso durante a
corrida devido a uma ingestão excessiva de líquidos. Um estudo
recomenda a ingestão de 500 mililitros por hora nas ultramaratonas. É
claro que essa recomendação não é totalmente efetiva, pois temos de
levar em conta a temperatura ambiente, a umidade e as características
físicas de cada corredor, mas a quantidade de líquido a ser ingerida é
crucial: muito pouco desidrata e o excesso leva à hiponatremia.

Problemas gastrointestinais

Náuseas e sangramentos gastrointestinais são problemas comuns nos
ultracorredores. A náusea tem inúmeras causas, como hiponatremia,
desidratação, dieta com excesso de carboidratos e o estresse da prova.

O sangramento gastrointestinal também tem relação com o estresse
físico e emocional e com a dieta.

Estudos mostram que é benéfico o uso de um protetor gástrico antes da
ultramaratona.

Bolhas

A bolha não é uma exclusividade do ultramaratonista. É o resultado de
atrito que causa a separação da pele em duas camadas preenchida por
líquido. Entre os fatores que predispõem a formação de bolhas estão
tênis novos ou muito velhos, longas distâncias, aumento de velocidade
e umidade ou sujeira (pedregulhos, por exemplo) no calçado.

Muitos corredores usam medidas preventivas, como envolver com
esparadrapo os pontos mais suscetíveis, escolher adequadamente tênis,
lubrificantes e meias com duas camadas e trocar tênis e meias durante
a prova, se for necessário.

Se a bolha aparecer durante a prova, ela deve ser limpa e drenada e
realizado um curativo. Existem curativos próprios para bolhas, mas
dificilmente são encontrados no Brasil. Uma saída é realizar um
curativo simples com gaze e esparadrapo em duas camadas (um curativo
sobre o outro) para diminuir o atrito no local.

Hematomas subungueais

São os sangramentos que ocorrem embaixo das unhas. Podem ser muito
dolorosos e são causados por trauma direto.

Se um ocorrer durante a corrida e for muito doloroso, pode ser
drenado. Deve ser feita uma boa limpeza da unha com anti-séptico, e,
com uma agulha estéril (ou um alfinete esterilizado), faz-se uma
perfuração na unha até que o sangue comece a ser drenado. Após a
drenagem, normalmente, o corredor consegue continuar.

Complicações músculo-esqueléticas do ultramaratonista

A lesão por overuse é extremamente comum durante as ultramaratonas. Um
estudo de uma corrida de seis dias revelou que 60% dos corredores
apresentaram lesão severa o suficiente para afetar suas performances.
A mais comum é a tendinite no compartimento anterior da perna, seguida
de tendinite patelar e tendinite de aquiles.

Uma corrida de Sydney a Melbourne, em 1990, com 1.005 quilômetros e
duração de oito dias e meio, mostrou um histórico de 64 lesões em 32
participantes, 90% delas nos membros inferiores.

A tendinite do compartimento anterior da perna é referida como
tornozelo do ultramaratonista devido a sua freqüência. Ela ocorre por
uma inflamação no retináculo dos extensores do tornozelo, cuja causa
foi atribuída ao padrão de marcha/corrida adotado pela maioria dos
corredores, que limita muito a dorsiflexão e a flexão plantar do
tornozelo, aumentando a tensão no retináculo e desencadeando a
inflamação.

O treino para a ultramaratona

O fator isolado mais importante no treinamento para ultramaratonas é a
corrida longa. O preparo para uma corrida de 50 quilômetros pode ser
semelhante ao treino para uma maratona.

Corridas mais longas exigem um treino diferente, dependendo de
distância, particularidades do terreno e tempo a ser atingido. Apesar
de necessárias, as corridas longas não são sempre possíveis. O
corredor pode evitar um treino de 90 quilômetros, por exemplo, devido
ao alto risco de lesão e tempo necessário. Muitos se impõem um limite
de 50 a 60 quilômetros, e uma prova é normalmente usada como treino
para o próximo evento.

Um treino para exemplo deve incluir um longo de 40 a 50 quilômetros,
seguido de uma corrida de 15 a 20 quilômetros no dia seguinte. A
velocidade deve ser baixa: talvez 7 min/km para um corredor de elite e
13 min/ km para um corredor mais lento. Andar faz parte da estratégia
em ultramaratonas, principalmente para economia de energia em trechos
mais difíceis, como longas subidas. Treinar andando em passo acelerado
é importante. Corredores lentos são normalmente ultrapassados por
"andadores" rápidos em ultramaratonas. Os treinos devem incluir
subidas e algum tipo de treino de velocidade.

O repouso é essencial. Pode consistir em um day off ou uma corrida
leve. O repouso deve ser estendido se houver algum sinal de
overtraining ou doença (uma gripe). O treino deve obedecer a outros
fatores alheios ao esporte, como trabalho e demanda familiar. Ignorar
esses fatores tem, usualmente, um impacto negativo no resultado.

A concentração e o preparo mental também são muito importantes. Uma
corrida de 100 milhas pode parecer (e com toda razão...) intimidadora
para um ultramaratonista iniciante. Dividir a prova, mentalmente, em
diversas menores torna a distância mais "digerível". Pensamento
positivo, condicionando-se a banir qualquer hipótese de desistência, e
um bom time de apoio são grandes estímulos.

Passada a barreira das 100 milhas, a distância não será mais temida,
mas ela deverá ser sempre respeitada.

Nutrição

Mais de 10 mil calorias são necessárias para uma prova de 100 milhas,
e elas devem ser consumidas durante a corrida.

O corredor deve treinar a alimentação durante a corrida e evitar
alimentos a que não esteja habituado durante as provas. Sal precisa
estar disponível durante a prova e ser usado com restrição. Evite o
consumo isolado de carboidratos para prevenir náuseas. O consumo
conjunto de proteínas e gordura controla melhor a acidez estomacal.