publicado na Rússia há um século, essa especialização só ganhou
importância no Brasil no início desta década. Apesar do atraso, os
profissionais que optam pela carreira têm pela frente uma vantagem: o
esporte é hoje uma área que movimenta grandes somas em dinheiro em
todo o mundo. "A emergência da psicologia do esporte no Brasil nos
últimos anos não é gratuita; ela acompanha o desenvolvimento do
esporte no país. Há uma demanda crescente por profissionais que saibam
integrar uma equipe multidisciplinar.
Não há mais o ortopedista acompanhando determinada equipe, mas sim um
grupo trabalhando em conjunto e integrado por médico, nutricionista,
fisiologista, fisioterapeuta e, seguindo essa tendência, pelo
psicólogo do esporte", analisa Katia Rubio, coordenadora da
recém-criada Comissão de Esportes do CRP SP.
Apesar do desenvolvimento atual e das perspectivas animadoras, o
psicólogo que opta pela área, além de ser raro, não tem ainda
parâmetro salarial definido. Isso acontece porque esse profissional
cada vez mais requisitado pelo mercado ainda não existia, está sendo
formado agora. Grande parte dos profissionais que têm produzido na
área de psicologia do esporte é na verdade graduada em Educação
Física, território no qual a disciplina vinha sendo ministrada há mais
de 20 anos e que concentra a maior parte da bibliografia da área.
Mas é fato que uma outra parte desse mercado é ocupada por psicólogos
que, contudo, não têm formação específica para a área. "A psicologia
do esporte requer um conhecimento que é próprio. Não temos divãs;
temos quadras, piscinas, pistas, bancos de reservas. O que caracteriza
o trabalho do psicólogo do esporte é a sua adequação a um ambiente que
já existe. Daí a necessidade de o profissional conhecer as mazelas do
esporte, tanto do ponto de vista da instituição quanto do fenômeno. O
psicólogo que sai da graduação pensando que vai fazer psicologia do
esporte está se enganando. Ele acabará levando para o esporte os
referenciais da psicologia clínica, educacional ou de recursos
humanos, que representam realidades diversas.
Aqueles que se interessam pelo esporte devem buscar formação
especializada, que é posterior à graduação", afirma Katia. Do ponto de
vista técnico, os times profissionais costumam estudar seus adversário
nos mínimos detalhes. Querem conhecer suas jogadas, seu
posicionamento, suas táticas de jogo. Do ponto de vista psicológico,
existe também a mesma possibilidade: pode-se estudar o comportamento
do adversário e desse modo conhecer suas estratégias e fragilidades
emocionais. Ainda que haja diferenças sensíveis entre as intervenções
realizadas em esportes individuais e coletivos, a psicologia entra no
campo esportivo para, no caso dos esportes que visam somente à
vitória, os chamados de alto rendimento, preparar emocionalmente
atletas e equipes. Se nos esportes coletivos o trabalho do psicólogo
volta-se para o grupo e, conseqüentemente, para o vínculo, coesão e
superação das dificuldades relacionais, nos individuais o trabalho
concentra-se no sujeito e nas questões do autoconhecimento, atacando
pontos como ansiedade, stress competitivo e superação de limites.
Para Regina Brandão, psicóloga que acompanhou a equipe brasileira
masculina de vôlei que venceu as Olimpíadas de Barcelona em 1992, o
trabalho do psicólogo do esporte em determinados casos é vital: "Num
jogo de golfe, por exemplo, que pode durar até quatro horas e meia, o
jogador bate na bola por apenas dez minutos. Nas quatro horas e 20
minutos restantes, caminha no campo. O jogador tem que aprender a usar
esse tempo de forma positiva ou se desestrutura. O psicólogo é, então,
uma peça-chave".
Regina enfatiza ainda a importância de fatores como a coesão no caso
dos esportes coletivos: "Ela é o carro-chefe do trabalho do psicólogo.
Não é simples fazer com que 30 pessoas, com objetivos individuais,
unam-se por uma meta grupal maior. A dinâmica do grupo sempre cai
quando os objetivos individuais ultrapassam o do conjunto". Além do
trabalho com esportes de rendimento, que busca otimizar a performance
numa equipe institucionalizada, o psicólogo do esporte pode ainda
atuar no esporte escolar, recreativo e de reabilitação. Regina defende
firmemente que a psicologia do esporte não se restrinja ao atleta
profissional de alto nível. "Deve ser aplicada desde a base da
pirâmide para que, ao chegar ao topo, o atleta tenha se iniciado
dentro de um trabalho com acompanhamento psicológico. Isso evitaria
muitos dos problemas que temos com alguns grandes jogadores, que
revelam pouco equilíbrio emocional em determinadas situações. Se eles
tivessem sido trabalhados desde os 10 anos, provavelmente, teriam
outra cabeça."
Segmento Deve se Firmar de Maneira Fundamentada
Criada em maio deste ano, a Comissão de Esportes do CRP SP nasceu com
o propósito de discutir e fundamentar questões pertinentes a sua área
de atuação. "Nosso maior propósito é, por meio das discussões, fazer
com que o segmento se firme de maneira efetiva e organizada. Essa
estruturação deve ocorrer não somente do ponto de vista do
conhecimento, mas da aplicação profissional também", afirma a
coordenadora Katia Rubio.
As discussões têm girado em torno "da formação, do papel do
profissional, do uso dos instrumentos e das questões éticas
implicadas". Uma vez que parte dos profissionais que trabalham com a
psicologia do esporte é formada em Educação Física, uma das metas da
Comissão é trazer esse profissional para a mesa de discussões. "O
psicólogo, na tentativa de reservar mercado, tenta restringir a
psicologia do esporte para si. Isso é um problema, já que o fato de
ele ser psicólogo não significa que seja um bom psicólogo do esporte.
Não adianta querer reservar mercado, porque a questão é mais embaixo.
Temos de nos aproximar dos nossos pares, pois o profissional da
educação física possui um conhecimento que nós não temos. O trabalho
conjunto é imprescindível", considera Katia. No âmbito da ética, as
discussões da Comissão passam pela preocupação em se preservar a
identidade do atleta. "Há profissionais neste setor que não estão
respeitando esse princípio. Quando o psicólogo informa o resultado de
um teste para um técnico, tem de observar o Código de Ética e analisar
se o que está fazendo é condizente", ela comenta. Outra questão
relaciona-se ao uso dos instrumentos de avaliação. Alguns psicólogos
estão utilizando nesse trabalho instrumentos específicos de outras
áreas, como educação e RH.
Esse emprego da avaliação não pode ser aleatório: "É preciso saber de
que forma serve ao atleta, à comissão técnica e ao clube". A Comissão
de Esportes realiza reuniões periódicas na sede do CRP, e os
profissionais interessados em contatá-la devem obter informações na
Secretaria do Conselho.
As Cabeças por Trás da Bola
A demora para que a psicologia do esporte conquistasse maior espaço no
país do futebol tem lá suas lendas, como tudo que envolve esse esporte
mítico por aqui. Conta-se que durante os preparativos para a Copa do
Mundo de 1958, sediada na Suécia, a CBD, então presidida por Paulo
Machado de Carvalho, que era também dono da Rádio e TV Record, decidiu
profissionalizar a Seleção Canarinho montando uma equipe técnica de
primeira linha que incluía especialistas de diversas áreas, entre eles
um psicólogo. O escolhido foi João Carvalhais, que chegou a trabalhar
19 anos com o São Paulo Futebol Clube.
O relato que vem a seguir deve levar em consideração a história da
própria psicologia, na época ainda marcada por avaliações psicológicas
tecnicistas, procedentes principalmente dos EUA, caracterizadas pela
aplicação de testes que mediam, inclusive, a inteligência dos
jogadores. Naquela Copa estreou um jovem atleta negro de 17 anos que
viria a se tornar um dos maiores do século: ninguém menos que Pelé. Ao
lado dele, na ponta-direita, atuava Garrincha, famoso tanto pelos seus
dribles desnorteantes quanto por sua ingenuidade. Ao aplicar o teste
de inteligência Wais em Garrincha, Carvalhais chegou a uma conclusão
desconcertante: a pontuação obtida pelo craque o situava na condição
de limítrofe.
O técnico do escrete, Vicente Feola, quis então saber se isso impedia
Garrincha de jogar futebol. Carvalhais considerou que não, ao que
Feola desabafou: "Ainda bem que ele pensa com os pés". O psicólogo
também considerou o garoto Pelé imaturo demais para enfrentar uma
Copa. Sua avaliação final teria resultado na recomendação de que os
dois craques fossem para o banco de reservas, no que foi atendido por
Feola. E foi assim que, até o terceiro jogo, o time brasileiro
enfrentou seus adversários sem suas estrelas emergentes. Quando afinal
Pelé e Garrincha puderam pôr os pés na bola, deixaram a galera
planetária de queixo caído. E foi só depois que a Copa terminou, com
uma belíssima vitória brasileira, que a imprensa quis saber por que,
afinal, Feola não havia escalado aquelas feras desde o primeiro jogo.
A culpa foi parar nos ombros de Carvalhais, ou melhor, da psicologia,
que desde então foi afastada da Seleção Brasileira para só no ano
passado, 40 anos depois, voltar a ser valorizada, quando o piripaque
emocional de Ronaldinho afetou o entrosamento da equipe na disputa
pela Copa da França, levando o Brasil à derrota. Outra vez a imprensa
quis saber de quem era a culpa, e por que raios a equipe técnica da
Seleção Brasileira não dispunha de um psicólogo... Como por trás de
toda lenda há um rastro de verdade, a história de Carvalhais parece
mesmo ter marcado o afastamento da psicologia do futebol brasileiro e,
pela sua importância referencial às outras modalidades, nesses anos
todos. Tanto é que, do caso Ronaldinho para cá, a coisa mudou bastante
e a psicologia tem aparecido cada vez mais, enfatizada por exemplo
pela presença da psicóloga Suzy Fleury na equipe da Seleção. Em 1998,
ao vencer a Copa do Brasil com o Palmeiras, o técnico Luiz Felipe
Scolari, o Felipão, fez questão de dedicar publicamente a conquista à
psicóloga que o assessorou por três anos: Regina Brandão.
Também é importante ressaltar que, nessas quatro décadas, os
instrumentos de psicodiagnóstico de atletas tornaram-se completamente
diferentes daqueles empregados na época pioneira de Carvalhais,
profissional que pode ter sido mais uma vítima de estigmatização que
um algoz, como registrou a mídia, desde sempre sensacionalista. Com a
ajuda de instrumentos sofisticados, o trabalho do psicólogo hoje
tornou-se mais objetivo. Empregados para identificar lideranças,
delinear perfis ou canalizar agressividades para a competição, esses
instrumentos são usados sempre com base em respaldo teórico. "Sem a
teoria não fazemos nada. Ela nos fornece referenciais para
intervenções, dinâmicas de grupo, processos de motivação e nas
avaliações. Não é só observar, medir e concluir. Temos de saber com
quais conceitos humanos estamos trabalhando", distingue Katia Rubio.
Fonte: http://www.crpsp.org.br/a_acerv/jornal_crp/117/frames/fr_especializacao.htm